sexta-feira, 26 de dezembro de 2008


























A secret place – Heather Nevay


Clepsidra


Tenho a minha porção exacta de água serena

para falar aqui do que fomos, do que somos

e do que naturalmente seremos. Como sabes, nascemos

no mesmo dia, na mesma hora, no mesmo instante

em que a lua cheia tingia de prata as asas das gaivotas

e o mar bebia toda a transparência dos rios impolutos.

Agora, neste silêncio tão líquido de cumplicidades,

deixamos cair das mãos frases bonitas no cimo das pontes

que alguém apanha depois nas margens movediças da incerteza.

Para quem ignora, somos um e dois e muitos simultaneamente.

Se vês um caminhante na companhia de um lobo, sabes que sou eu.

Por mim, sei que te encontro no limiar do horizonte.

É lá que tu… voas…


Olha, esgotou-se-me o tempo,

esgotou-se a água da minha clepsidra.

Agora é a tua vez: fala. Ou ri. Por exemplo:

amanhã, se te perguntarem por nós, diz

que nos perdemos num bosque de palavras

e que uma velha musa nos fez de Hansel e Gretel

aprisionando-nos numa intranquila casa em forma de poema.


segunda-feira, 24 de novembro de 2008






















Sunday – Edward Hopper


Mensagem numa garrafa de rum


Acabo de sorver a última gota de rum desta garrafa.

Como se não acreditasse, inclino-a ao nível do olhar

e assesto-a assim, qual monóculo de desusado pirata

esquadrinhando nervoso o horizonte de espelho flutuante

onde só navegam os navios fantasmas de velas esfrangalhadas.

O que faço agora, nesta ilha de areias secas e palmeiras estéreis,

Robinson Crusoe desesperado sem um Sexta-feira por companhia?

Quem me salva da solidão que me escama paulatinamente a pele,

o delirium tremens que me abala o corpo em maremotos?


A minha esperança é este poema nesta garrafa vazia

que atiro enfurecidamente ao mar.


E agora sento-me, e espero…


sexta-feira, 21 de novembro de 2008




















Les amants - René Magritte


Vampiros


Somos vampiros

e só saímos à noite.

O sol queima-nos a vista

e mostra as imundas chagas da carne,

o bolor, o pus da alma infecta.


Somos vampiros

e só saímos à noite.

O dia é uma faca

de metálico e cintilante gume

que nos dilacera as mãos e a cara.


Somos vampiros

e só saímos à noite.

Os espelhos mentem

e as pessoas que desejamos ser

não mostram nada o que sentem.


terça-feira, 18 de novembro de 2008
























Ураган Дуся - Andrey Remnev


Post-scriptum


Ah! Não te esqueças de estender os teus poemas na varanda:

fechados, ganham ferrugem e não soam muito bem aos ouvidos;

fechados, tilintam conforme metais impuros das metalurgias

e têm a cintilação embaciada de zebre das estrelas longínquas.

Fechadas, as palavras amolecem e pegam-se umas nas outras,

tornam-se difíceis de articular, enrolam-se na mecânica das línguas.

Fechadas, em vez de leres liberdade lês obscuridade

e em vez de leres amor lês bolor.


As palavras querem-se ao sol.

A poesia quer-se ao vento.

Não te esqueças.

























Exsanguis - Dino Valls


Metáforas de sangue


Sangue…

De que cor é o sangue que te flui nas veias?

Não é vermelho, nem azul, o teu sangue.

O teu corpo é trespassado por arco-íris,

tem cheiro a montes, rosmaninho e maias,

pomares de frutos maduros e doces amoras negras;

nele gravitam gaivotas fluorescentes de sal e plâncton,

perdem-se de vista praias de areia e segredos de espuma,

nele se arrastam vagabundos que tocam melodias de flauta,

audazes viajantes nocturnos que coleccionam estrelas.

Pelo teu corpo escorrem ribeiras límpidas e bravas,

que arrastam as esperanças caídas de Outono,

e sopram ventos que enlouquecem os moinhos

que desfazem os cereais em puras palavras.


O teu sangue é farinha de palavras

e tem a cor da poesia.


segunda-feira, 17 de novembro de 2008



















La Minotauro Machie - Pablo Picasso



Memórias do Labirinto


Um dia fui à minha procura sem fio de Ariadne.

Percorri caminhos sem luz, e se me olhasse ao espelho

o meu rosto seria a memória húmida de um animal,

raivoso e embrutecido, capaz de devorar os incautos.

Sem retorno possível ziguezagueei faminto no escuro

entre os muros tetraédricos, lancinantes da insónia

e à saída descobri o outro que era eu que não era eu.


Umas vezes fui homem, outras vezes fui touro;

muitas vezes fui besta-fera metade-metade,

ilegítimo príncipe descendente de Minos, rei de Creta.


sábado, 8 de novembro de 2008



















Klinik party – Saturno Butto


7


Sábado é o cume do penhasco,

Domingo é a repugnante náusea

e Segunda-feira a amarga ressaca.

Terça é a branca apatia,

Quarta é o lento despertar,

Quinta o retomar da marcha

e Sexta a grande escalada

para de novo tombar

no abismo de Sábado.


quinta-feira, 6 de novembro de 2008






















Old woman frying eggs – Diego Velázquez


Avó, velha andorinha


Por dentro da casa da minha avó voavam andorinhas.

Toda ela, a casa, era um imenso céu vertical

em silenciosas paredes brancas de cal.

Toda ela, a casa, era uma seara com papoilas

porque o ar que se respirava tinha o cheiro dos cereais

acabados de debulhar nas eiras de pedra antiga.

Toda ela, a casa, era um pomar de maçãs, de peros de agosto

amadurecidos sob a cama de linho da minha avó.


Por dentro da casa da minha avó voavam andorinhas.

Rasavam velozes o soalho esfregado com sabão amarelo,

bebiam sôfregas a água do poço nos cântaros da cantareira.

O pão quente e o café de Angola eram feitos pela minha avó.

Pois era, a minha avó tinha já a sabedoria dos pássaros ancestrais,

apesar do seu corpo mirrado albergar todo o peso da sabedoria.

Leves eram as andorinhas de barro que no céu das paredes

voavam paradas.


sábado, 1 de novembro de 2008




















La mort de Pegase – Lukas Kandl


Pégaso


Os cavalos negros de cascos duros e férreos

cavalgam-me relinchando sobre o corpo cansado

e espezinham-me e aniquilam-me os membros.

Escrever teimosamente assim poesia

causa-me desvarios, tonturas, vertigens,

tem sempre aquela sensação de pavor eterno das alturas

e do movediço pântano que me espera.


Onde estás tu, Pégaso,

astuto cavalo branco alado,

para que pelo nebuloso espaço

me leves depressa ao Monte da Luz

no teu meigo dorso montado?...


quarta-feira, 29 de outubro de 2008











Dissectio – Dino Valls


Dissecação ortográfica


Quando me apetece dissecar as palavras

disseco-as à minha maneira: primeiro

espero pela calada da noite e adormeço-as

com clorofórmio, mas preciso ser célere

senão adormeço eu sobre a brancura do papel.

Depois distendo-as nas linhas rectas do caderno

e esventro-as com a minha bic cristal.

( Lembras-te? Bic laranja para dissecação fina,

bic cristal para dissecação normal )...

Por exemplo, distendo a palavra pássaro:

divido-a em asas, plumas, trinados...

Se me debruçar no íntimo de asas consigo depurar

vários azuis, nuvens, ventos e ainda Ícaro

(encontro sempre Ícaro na dissecação de asas, porquê?).

É sempre inquietante dissecar a palavra pássaro.

Outro exemplo, distendo a palavra árvore:

divido-a em raízes, folhas, flores, frutos...

E se me debruçar no âmago de frutos consigo extrair

maçã, paraíso, Adão e Eva,

e Eva faz-me lembrar a nudez do teu corpo

(encontro-te sempre na dissecação de frutos, porquê?).

É por isso que acho assaz perigoso dissecar a palavra árvore.

O melhor seria deixar as palavras em paz.


segunda-feira, 27 de outubro de 2008



















Reincarnation of the city - Mitsuyoshi Haruguchi


Ruínas de vidro


As cidades em campânulas

parecem sempre muito frágeis.

Ao som doutros passos, ou gritos,

estremecem e temem a derrocada.

Nem as muralhas que outrora barravam

os destemidos cavaleiros sanguinários,

nem mesmo essas são agora intransponíveis.

Não, não há torres nem arranha-céus eternos.

Eternos são os voos dos pássaros indesejados.

Eternas são as ruínas dos impérios de vidro.


sexta-feira, 24 de outubro de 2008



















Scintillating Venuses – Kris Lewis


Devaneio da rosa roxa


Na tua varanda há uma rosa roxa e

não sabes se és feliz porque tens uma rosa roxa?

Trepar um monte faz-me feliz, nadar no mar também.

Pequenas coisas fazem-me feliz: fico feliz quando

escrevo um poema, mesmo sendo um poema para ninguém.

Um caracol na minha mão também é um poema,

e uma joaninha, e uma rosa roxa na tua varanda.


Rosa roxa, roxa rosa:

repara no anagrama…


Não sei se serias feliz sem a tua rosa roxa.

A tua rosa abrange, contém, encerra tudo,

o aqui e o além, o agora e o eterno…

Se um caracol comer a tua rosa roxa,

o teu dever é amar o caracol.

Passa a ser o teu caracol de estimação

com rosa roxa no interior.


Rosa roxa, roxa rosa:

repara no anagrama…


Eu sei que divago, mas a tua rosa roxa

é um poema na varanda.


quinta-feira, 23 de outubro de 2008
















The metamorphosis – Frank Kortan


Poema (processado) para Kafka


Digam-me se não estarei a ficar louco.

Vi Gregor Samsa transformar-se em Kafka

na metamorfose descrita por um escaravelho gigante

já extinto, mais que extinto, da face da Terra.

Agora, os meus porcos comem pérolas ao pequeno-almoço,

as minhas galinhas cacarejantes põem ovos de oiro,

os meus peixes vermelhos nadam em champanhe

e as minhas vacas malhadas dão caramelos.

O cão, outrora fiel, urinou na fogueira e eu disse:

o fogo é o melhor amigo do homem.

O inferno é um paraíso, é lá que eu quero estar.

A paixão e o assassínio ainda estão a anos-luz,

amanhã poderão estar à distância de um abraço

e assim se desfará a branca espuma dos dias

com a demência que me trespassa

qual excessiva flecha de aço.


quarta-feira, 22 de outubro de 2008
















Dance hall of Gregor Samsa – Frank Kortan


Metamorfose


Sou o que escrevo, porém nem sempre.

Se quero ser espelho, escrevo: sou espelho. E sou espelho.

Se quero ser silêncio, escrevo: sou silêncio. E sou silêncio.

Já quando quero ser poema tenho forçosamente que pensar em ti,

na claridade que emanas mesmo ao crepúsculo das tardes sombrias,

na luz laranja límpida com que pintas os horizontes de setembro.

Não é fácil pensar em ti porque tens mil formas efémeras de ser:

Às vezes és dia, ave branca, nuvem volátil, cirro lilás,

caule de feno, flor de giesta, romã aberta ao meio;

onda do mar, búzio, areia quente, corpo nu, miragem de um seio.

Outras vezes és noite, ave negra, feiticeira dos bosques virgens;

lua, flor nocturna, coaxar de rã, grito de mocho, ira dos lobisomens.


Sou o que escrevo, menos quando quero ser poema.

Se quero ser poema, quem escreve poema és tu.

Por isso às vezes a minha vida é um lápis nas tuas mãos.


terça-feira, 21 de outubro de 2008













Self portrait – Madeline von Foerster


Xácara das sete bruxas


Há no bosque da minha aldeia

sete bruxas, dizem, muito belas.

Ainda um dia destes me perco

e entrego-me a uma delas.


Das sete, seis avoam de noite:

passam pelos peitoris ensebados,

de vassouras mágicas em punho,

roçando neles as nádegas dos rabos.


Das sete, cinco bailam ao luar,

juntam-se nos ermos terreiros

e, tocando adufes sempre à roda,

atraem os mancebos solteiros.


Das sete, quatro despem-se todas

e banham-se na frescura das fontes.

São tão esbeltas e tão fogosas

que enlouquecem os viajantes.


Das sete, três são ruins feiticeiras:

secam sapos e mandrágoras no telhado,

falam com os negros corvos ao ombro

e lançam pragas de mau-olhado.


Das sete, duas são boas alquimistas,

defumam as vestes de artemísia e saflor,

conhecem os antigos segredos das ervas

e preparam infalíveis filtros de amor.


Das sete, uma tem olhos verdes

e há quem lhe denomine Cloé.

Usa tiaras de jasmim no cabelo,

chamam-lhe bruxa e não sabe que o é.


Há no bosque da minha aldeia

sete bruxas, dizem, muito belas.

Ainda um dia destes me perco

e entrego-me a uma delas.


segunda-feira, 20 de outubro de 2008












Group portrait with lady – Siegfried Zademack


Marcas de água


Sim, é claro que podes ser gaivota trazendo no bico histórias do mar.

Eu posso ser pirata ladrão de tesouros alheios em ilhas tropicais.

Também podes ser Alice num país inventado com as cores dos flamingos

e eu filósofo erguendo a taça de cicuta à beira dos abismos helénicos.

Podes ser Calamity Jane de arma em punho, brigona, ébria de perigos,

e eu Kerouac percorrendo as estradas alucinantes em busca dos vagabundos.

Podes imaginar-te Agatha Christie dissimulando a faca do assassino

e eu Pessoa concebendo o Tejo como um desassossegado poema líquido.

Podes, podes ser Cleópatra e rainha das incompreensíveis pirâmides

e eu Marco António, romano, e morrermos juntos em Alexandria...


Mas se nos olharmos atentamente à contraluz do cair da tarde,

nessa hora em que os pássaros sonarentos fecham as asas ao dia,

verás que cada um de nós tem esse estigma indelével e inextinguível

que não engana ninguém nem os invisuais que nem Braille sabem ler.

Estamparam-nos as marcas de água na textura maleável do corpo:

seremos sempre como papel genuíno de um livro ainda por escrever.


sábado, 18 de outubro de 2008
















Le Thérapeuthe - René Magritte


Pai, árvore e pássaro


Acertei o relógio de silêncio com a queda das folhas de outono.

Depois esperei pelo inverno, deixei-o passar sem um único suspiro.

O meu pai, que era um homem silencioso, partira sem dizer adeus.

O meu pai tinha a linguagem das árvores, ele e as árvores

usavam a mesma língua.

Ainda o ouço dizer: nós, seres humanos, somos uma mistura

de árvore e de pássaro:

precisamos de raízes, mas também de asas para irmos mais longe.

Porém nunca te esqueças que é na árvore que o pássaro constrói o ninho.


O meu pai albergava todos os pássaros sem proferir uma palavra.

O meu pai utilizava qualquer árvore em troco de um chilreio matinal.

O meu pai era uma árvore, era um pássaro, partiu sem dizer adeus.

Deixou-me o seu relógio de silêncio.


sexta-feira, 17 de outubro de 2008












Bent – De Es Schwertberger


Ofício de Amar – Poema no masculino


Todos os ofícios requerem estudo

mas o de amar precisa de braços, mãos calejadas,

suor para erguer as pedras do nosso edifício.


Se a paixão sorri ao virar das esquinas,

o amor, ah! o amor de argamassa, pedra e cal,

esse amor constrói-se das ruínas.


O ofício de amar deve ter um princípio, um meio e um fim.

Gostaria de não saber fazer outra coisa:

Amar. Amar-te. Dar tudo de mim.


quinta-feira, 16 de outubro de 2008















Weeping girl – Edvard Munch


Ofício de Amar – Poema no feminino


A luz que vem de ti

é a luz que a lua emana

nas noites de Agosto sem estrelas

sobre o meu corpo desamparado

em jardins secretos de passifloras

e sublimes dedaleiras venenosas.


É ao mesmo tempo tudo e nada, porque não posso esperar de ti

as duas mãos cheias de mundo, o olhar inteiro só para mim…


Às vezes quero cortar os pulsos, subir a ponte e saltar…

Mas isso porque me esqueço que não és só meu

e finjo não saber que o teu ofício é amar.


quarta-feira, 15 de outubro de 2008













Corner – Ivan Titor


Cidade


Na cidade das antenas

e da sucata ambulante

dourada,

metalizada,

as chaminés vomitam fumo

que me cola os olhos

e me adormece em movimento.

Fico ébrio, eufórico, eléctrico

ao som das sirenes sem tino

que me arrancam da cama

(que desatino!)

para beber mais um copo

do doce veneno.