segunda-feira, 24 de novembro de 2008






















Sunday – Edward Hopper


Mensagem numa garrafa de rum


Acabo de sorver a última gota de rum desta garrafa.

Como se não acreditasse, inclino-a ao nível do olhar

e assesto-a assim, qual monóculo de desusado pirata

esquadrinhando nervoso o horizonte de espelho flutuante

onde só navegam os navios fantasmas de velas esfrangalhadas.

O que faço agora, nesta ilha de areias secas e palmeiras estéreis,

Robinson Crusoe desesperado sem um Sexta-feira por companhia?

Quem me salva da solidão que me escama paulatinamente a pele,

o delirium tremens que me abala o corpo em maremotos?


A minha esperança é este poema nesta garrafa vazia

que atiro enfurecidamente ao mar.


E agora sento-me, e espero…


sexta-feira, 21 de novembro de 2008




















Les amants - René Magritte


Vampiros


Somos vampiros

e só saímos à noite.

O sol queima-nos a vista

e mostra as imundas chagas da carne,

o bolor, o pus da alma infecta.


Somos vampiros

e só saímos à noite.

O dia é uma faca

de metálico e cintilante gume

que nos dilacera as mãos e a cara.


Somos vampiros

e só saímos à noite.

Os espelhos mentem

e as pessoas que desejamos ser

não mostram nada o que sentem.


terça-feira, 18 de novembro de 2008
























Ураган Дуся - Andrey Remnev


Post-scriptum


Ah! Não te esqueças de estender os teus poemas na varanda:

fechados, ganham ferrugem e não soam muito bem aos ouvidos;

fechados, tilintam conforme metais impuros das metalurgias

e têm a cintilação embaciada de zebre das estrelas longínquas.

Fechadas, as palavras amolecem e pegam-se umas nas outras,

tornam-se difíceis de articular, enrolam-se na mecânica das línguas.

Fechadas, em vez de leres liberdade lês obscuridade

e em vez de leres amor lês bolor.


As palavras querem-se ao sol.

A poesia quer-se ao vento.

Não te esqueças.

























Exsanguis - Dino Valls


Metáforas de sangue


Sangue…

De que cor é o sangue que te flui nas veias?

Não é vermelho, nem azul, o teu sangue.

O teu corpo é trespassado por arco-íris,

tem cheiro a montes, rosmaninho e maias,

pomares de frutos maduros e doces amoras negras;

nele gravitam gaivotas fluorescentes de sal e plâncton,

perdem-se de vista praias de areia e segredos de espuma,

nele se arrastam vagabundos que tocam melodias de flauta,

audazes viajantes nocturnos que coleccionam estrelas.

Pelo teu corpo escorrem ribeiras límpidas e bravas,

que arrastam as esperanças caídas de Outono,

e sopram ventos que enlouquecem os moinhos

que desfazem os cereais em puras palavras.


O teu sangue é farinha de palavras

e tem a cor da poesia.


segunda-feira, 17 de novembro de 2008



















La Minotauro Machie - Pablo Picasso



Memórias do Labirinto


Um dia fui à minha procura sem fio de Ariadne.

Percorri caminhos sem luz, e se me olhasse ao espelho

o meu rosto seria a memória húmida de um animal,

raivoso e embrutecido, capaz de devorar os incautos.

Sem retorno possível ziguezagueei faminto no escuro

entre os muros tetraédricos, lancinantes da insónia

e à saída descobri o outro que era eu que não era eu.


Umas vezes fui homem, outras vezes fui touro;

muitas vezes fui besta-fera metade-metade,

ilegítimo príncipe descendente de Minos, rei de Creta.


sábado, 8 de novembro de 2008



















Klinik party – Saturno Butto


7


Sábado é o cume do penhasco,

Domingo é a repugnante náusea

e Segunda-feira a amarga ressaca.

Terça é a branca apatia,

Quarta é o lento despertar,

Quinta o retomar da marcha

e Sexta a grande escalada

para de novo tombar

no abismo de Sábado.


quinta-feira, 6 de novembro de 2008






















Old woman frying eggs – Diego Velázquez


Avó, velha andorinha


Por dentro da casa da minha avó voavam andorinhas.

Toda ela, a casa, era um imenso céu vertical

em silenciosas paredes brancas de cal.

Toda ela, a casa, era uma seara com papoilas

porque o ar que se respirava tinha o cheiro dos cereais

acabados de debulhar nas eiras de pedra antiga.

Toda ela, a casa, era um pomar de maçãs, de peros de agosto

amadurecidos sob a cama de linho da minha avó.


Por dentro da casa da minha avó voavam andorinhas.

Rasavam velozes o soalho esfregado com sabão amarelo,

bebiam sôfregas a água do poço nos cântaros da cantareira.

O pão quente e o café de Angola eram feitos pela minha avó.

Pois era, a minha avó tinha já a sabedoria dos pássaros ancestrais,

apesar do seu corpo mirrado albergar todo o peso da sabedoria.

Leves eram as andorinhas de barro que no céu das paredes

voavam paradas.


sábado, 1 de novembro de 2008




















La mort de Pegase – Lukas Kandl


Pégaso


Os cavalos negros de cascos duros e férreos

cavalgam-me relinchando sobre o corpo cansado

e espezinham-me e aniquilam-me os membros.

Escrever teimosamente assim poesia

causa-me desvarios, tonturas, vertigens,

tem sempre aquela sensação de pavor eterno das alturas

e do movediço pântano que me espera.


Onde estás tu, Pégaso,

astuto cavalo branco alado,

para que pelo nebuloso espaço

me leves depressa ao Monte da Luz

no teu meigo dorso montado?...