sexta-feira, 26 de junho de 2009



























Le Jeune Funambule - Jessica Rice


Funâmbulo


Esticando a corda

entre as torres mais altas das cidades de néon

avanço pé ante pé desafiando o babujar da vertigem.

Os olhos ávidos dos que estão por baixo não me inquietam.

Mas ouço a voz dos mortos que me falam pelo murmúrio do vento,

os tais antepassados que me ensinaram a caminhar

na linha ténue do horizonte do sangue apelativo

sussurram que a nossa vida é um risco de carvão contra o céu.

E mais: que os suores frios são comuns àqueles

que comprometem a vida sobre a corda estendida

e julgam que qualquer caminho é uma linha recta

de um ponto a outro do nosso periclitante corpo.

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domingo, 21 de junho de 2009



























Emergence – Mikel Glass



Gotas de tempo puro


Muitas pessoas não sabem

que hoje é o dia mais longo do ano.

Que fazer das mãos num dia assim?

A mim apetece-me

perder-me na manhã em busca das pervincas

e perceber por que eram essas plantas

tão amadas por poetas e feiticeiros.

A mim apetece-me

trepar os envelhecidos limoeiros,

colher limões de oiro como quem beija

e extinguir a secura da tua ausência.

A mim apetece-me

coleccionar conchas na espuma das ondas,

fazer-me peixe profundo dos oceanos

e saber por que há mais mar do que terra.

A mim apetece-me

estender-me na sombra dos salgueiros,

saborear vermelhas melancias sedutoras

e ao acaso abrir um livro de aventuras.

A mim apetece-me

esperar os cucos nos castanheiros

enquanto o crepúsculo afaga a noite

e entender por que lhes chamam ladrões de ninhos.


Que fazer das mãos num dia assim?

A mim apetece-me

espremer esse dia mais maduro

em gotas de tempo puro.

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segunda-feira, 8 de junho de 2009
















Dialogue in a room - Mitsuyoshi Haruguchi

Gaveta

Na gaveta guardam-se os tempos das colheitas,
as cartas que se liam como quem come romãs
e receia engrossar as bocas trémulas temerosas.
Na gaveta guardam-se todas as fotografias impessoais,
os amigos que só existem a preto e branco
ou nas curtas-metragens inverosímeis de ficção.
Na gaveta guardam-se as chaves improváveis,
os revólveres devastadores do sonho estropiado
e as mãos quietas desprovidas de linhas sibilinas.
Na gaveta guardam-se todos os bilhetes dos comboios
que ousando atravessar a inimaginável noite
partiram daqui do peito e chegaram a lugar incerto.
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