segunda-feira, 20 de outubro de 2008












Group portrait with lady – Siegfried Zademack


Marcas de água


Sim, é claro que podes ser gaivota trazendo no bico histórias do mar.

Eu posso ser pirata ladrão de tesouros alheios em ilhas tropicais.

Também podes ser Alice num país inventado com as cores dos flamingos

e eu filósofo erguendo a taça de cicuta à beira dos abismos helénicos.

Podes ser Calamity Jane de arma em punho, brigona, ébria de perigos,

e eu Kerouac percorrendo as estradas alucinantes em busca dos vagabundos.

Podes imaginar-te Agatha Christie dissimulando a faca do assassino

e eu Pessoa concebendo o Tejo como um desassossegado poema líquido.

Podes, podes ser Cleópatra e rainha das incompreensíveis pirâmides

e eu Marco António, romano, e morrermos juntos em Alexandria...


Mas se nos olharmos atentamente à contraluz do cair da tarde,

nessa hora em que os pássaros sonarentos fecham as asas ao dia,

verás que cada um de nós tem esse estigma indelével e inextinguível

que não engana ninguém nem os invisuais que nem Braille sabem ler.

Estamparam-nos as marcas de água na textura maleável do corpo:

seremos sempre como papel genuíno de um livro ainda por escrever.


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