segunda-feira, 2 de junho de 2008




















Wellcome home (Sanitarium) - Miguel Fazenda

O lado de lá de cá

Na minha cidade havia um edifício que se destacava de todos os outros,
apesar de as multidões de transeuntes mal repararem nele.
As pessoas passavam por ele quase em corrida, acotovelando-se umas nas outras,
sem se olharem, sem se sorrirem, ao som dos ruídos, dos reclames,
das sirenes, dos motores, das sirenes, dos motores, num vaivém frenético de insecto
para chegarem a qualquer lado que nem elas próprias sabiam.
Se calhar ignoravam-no, ou pura e simplesmente fugiam desse edifício.
Acho que percebo agora por que me advertiam os adultos, quando eu era criança,
para não me aproximar dele. Diziam que estavam lá dentro, enclausurados,
poetas lunáticos, artistas sonhadores, homens e mulheres que falavam sozinhos,
homens que fingiam ser inventores disto e daquilo, mulheres que se despiam
e bailavam nuas, bailavam, bailavam, até ao êxtase, arrancando os cabelos,
ou abrindo sulcos, rasgos, linhas de sangue na pele…

Pois um dia ganhei coragem e entrei. Aquela grande porta estava aberta
e, sem pensar duas vezes, entrei. Deparei com um corredor imenso, branco,
de azulejo, branco, e lá ao fundo as pessoas, paradas, olhavam para as paredes.
Avancei e juntei-me a elas. Não vi nada nas paredes, mas as pessoas continuavam
a olhar, muito serenas, contemplativas. Só depois reparei que, se olhasse com mais
atenção, visualizaria telas expostas pelas paredes brancas, brancas dos corredores,
e que as pessoas, paradas, quietas, as contemplavam com ar fascinado.
Havia uma que se intitulava «Multidão», outra «Controla a tua raiva»
e outra «As pessoas solitárias pensam em formigas»...
Também eu fiquei fascinado, diria mesmo subjugado ou completamente
magnetizado pelos quadros. A certa altura fiquei na incerteza se estava
no lado de cá ou no lado de lá das telas, e agarrou-se a mim um certo pavor:
o de me poder vir a encontrar retratado numa daquelas pinturas.
Por isso recuei, pé ante pé, primeiramente, depois a correr como um louco
para escapar dali. Atravessei o grande corredor branco, de azulejo, branco, branco
e, antes de sair do edifício, parei e li numa tabuleta dourada:
MANICÓMIO. ENTRADA LIVRE.

Fiquei baralhado, sem perceber coisa alguma…
Ainda hoje estou na dúvida. Ainda agora estou na dúvida.

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