quinta-feira, 5 de junho de 2008

























Eduardo Malé

Poema de argila


Para começar um poema, apanho uma frase tua no ar,

depois aprisiono-a no limbo da memória e mais tarde modelo-a

conforme o inconformado oleiro faz à argila vermelha:

amasso-a com todos os dedos, cravo-lhe as unhas, rasgo-a,

estendo-a e separo-a, palavra a palavra, até a lama escorrer como sangue.

Entre mim e as palavras estás sempre tu: porquê?

Quem quer saber dos poemas que se geram da costela das tuas frases?

Ontem, ao espreitar da noite, disseste: o disfarce é libertador...

E partiste silente e alvacenta como uma bela ave nocturna.

Apanhei o disfarce é libertador e aqui estou, a modelar a frase,

num esforço maternal de parir o poema, as mãos enlameadas de barro

vermelho ou quase tão vermelho como sangue de alguém.

Quero pensar que me disfarço de oleiro para me libertar, ou antes

para libertar as peças de cerâmica que se materializam da argila que somos.

Quero pensar que te libertas quando te disfarças perante mim;

por isso disseste: o disfarce é... e partiste como uma bela ave

deixando-me só – à luta com o barro, com a frase.


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