
Dissectio – Dino Valls
Dissecação ortográfica
Quando me apetece dissecar as palavras
disseco-as à minha maneira: primeiro
espero pela calada da noite e adormeço-as
com clorofórmio, mas preciso ser célere
senão adormeço eu sobre a brancura do papel.
Depois distendo-as nas linhas rectas do caderno
e esventro-as com a minha bic cristal.
( Lembras-te? Bic laranja para dissecação fina,
bic cristal para dissecação normal )...
Por exemplo, distendo a palavra pássaro:
divido-a em asas, plumas, trinados...
Se me debruçar no íntimo de asas consigo depurar
vários azuis, nuvens, ventos e ainda Ícaro
(encontro sempre Ícaro na dissecação de asas, porquê?).
É sempre inquietante dissecar a palavra pássaro.
Outro exemplo, distendo a palavra árvore:
divido-a em raízes, folhas, flores, frutos...
E se me debruçar no âmago de frutos consigo extrair
maçã, paraíso, Adão e Eva,
e Eva faz-me lembrar a nudez do teu corpo
(encontro-te sempre na dissecação de frutos, porquê?).
É por isso que acho assaz perigoso dissecar a palavra árvore.
O melhor seria deixar as palavras em paz.