sexta-feira, 23 de julho de 2010















Fonte dos inocentes - Istvan Sandorfi


Ventre


O corpo também tem linha de horizonte.

Para além dela existe o sonho da criança

que se escuta na proximidade do ventre.

E o ventre é um bote que apela.

Aguarda pelo nosso corpo estendido

até alcançar uma margem inesperada

onde os ulmeiros desnudos desfrutam as carícias

do vento.

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terça-feira, 22 de junho de 2010















O silêncio de Adèle - Istvan Sandorfi


Estendal


Estendemos a roupa sem corpo,

deixámos o corpo num outro lugar, mas

o sangue é a roupa que nos veste.

Não choverá – anuncia-nos o céu –, nem o sangue

se derramará para silenciar o rumor dos nossos passos na terra.

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sábado, 23 de janeiro de 2010



















The awakening of the forest - Paul Delvaux


Fuga

Saio para a rua.

Sinto um secreto, profundo desejo

de abraçar as árvores.



domingo, 20 de setembro de 2009














On the floor - Nancy Bea Miller

Este poema é uma montanha


Este poema é uma montanha. Já escalei este poema ene vezes.

Sigo sempre o trilho dos guardadores de palavras em rebanho.

Mas este poema é uma montanha que me extenua os sentidos,

me rouba os ecos abruptos da garganta e onde os músculos

me escorrem em indomáveis ribeiras cansadas.


Não busco as palavras otorrinolaringologia, esternoclidomastóideo,

supersticiosidade, anamnésia, anciloglossia, dubitabilidade...

Busco a flor das palavras raras, a medicina do seu silêncio.

Busco a flor das palavras simples, o silêncio da sua pureza.

Busco as palavras que não te consigo dizer em voz alta.


sexta-feira, 26 de junho de 2009



























Le Jeune Funambule - Jessica Rice


Funâmbulo


Esticando a corda

entre as torres mais altas das cidades de néon

avanço pé ante pé desafiando o babujar da vertigem.

Os olhos ávidos dos que estão por baixo não me inquietam.

Mas ouço a voz dos mortos que me falam pelo murmúrio do vento,

os tais antepassados que me ensinaram a caminhar

na linha ténue do horizonte do sangue apelativo

sussurram que a nossa vida é um risco de carvão contra o céu.

E mais: que os suores frios são comuns àqueles

que comprometem a vida sobre a corda estendida

e julgam que qualquer caminho é uma linha recta

de um ponto a outro do nosso periclitante corpo.

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domingo, 21 de junho de 2009



























Emergence – Mikel Glass



Gotas de tempo puro


Muitas pessoas não sabem

que hoje é o dia mais longo do ano.

Que fazer das mãos num dia assim?

A mim apetece-me

perder-me na manhã em busca das pervincas

e perceber por que eram essas plantas

tão amadas por poetas e feiticeiros.

A mim apetece-me

trepar os envelhecidos limoeiros,

colher limões de oiro como quem beija

e extinguir a secura da tua ausência.

A mim apetece-me

coleccionar conchas na espuma das ondas,

fazer-me peixe profundo dos oceanos

e saber por que há mais mar do que terra.

A mim apetece-me

estender-me na sombra dos salgueiros,

saborear vermelhas melancias sedutoras

e ao acaso abrir um livro de aventuras.

A mim apetece-me

esperar os cucos nos castanheiros

enquanto o crepúsculo afaga a noite

e entender por que lhes chamam ladrões de ninhos.


Que fazer das mãos num dia assim?

A mim apetece-me

espremer esse dia mais maduro

em gotas de tempo puro.

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segunda-feira, 8 de junho de 2009
















Dialogue in a room - Mitsuyoshi Haruguchi

Gaveta

Na gaveta guardam-se os tempos das colheitas,
as cartas que se liam como quem come romãs
e receia engrossar as bocas trémulas temerosas.
Na gaveta guardam-se todas as fotografias impessoais,
os amigos que só existem a preto e branco
ou nas curtas-metragens inverosímeis de ficção.
Na gaveta guardam-se as chaves improváveis,
os revólveres devastadores do sonho estropiado
e as mãos quietas desprovidas de linhas sibilinas.
Na gaveta guardam-se todos os bilhetes dos comboios
que ousando atravessar a inimaginável noite
partiram daqui do peito e chegaram a lugar incerto.
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domingo, 31 de maio de 2009

















Concert in the egg - Hieronymus Bosch


Poegema
(Cantado pelo pássaro que nunca fui)

As pessoas da minha cidade são como pássaros,
também como pássaros:
têm como beirado as muralhas de um castelo
e nelas constroem os seus ninhos em forma de casas.
As casas têm a frescura do interior das árvores
e as entradas são em arco como nos contos de fadas.
Por fora têm a cor da alma, que toda a gente sabe é feita de cal.
De uma janela a outra as pessoas saúdam-se com trinados,
e não há dúvida, têm o som de palavras com sabor a música.
Bom dia tem sabor a música, e que rico dia de domingo também.
As pessoas, como os pássaros, como nós,
não se importam que pelo luar das paredes alastrem trepadeiras,
ou buganvílias, ou malmequeres, ou bravas roseiras.
As pessoas, como os pássaros, gostam de sombras
e de cheiros e do rumor das fontes na calçada.
As pessoas da minha cidade são como pássaros,
também como pássaros:
gostam de ter o céu por perto
porque é nas asas que habitam os sonhos - a loucura.


Poema de Revel

sábado, 25 de abril de 2009




















Girl in wind of April - Shang Ding

Abril

Conto-te resumidamente o que aconteceu em abril:
Colhias flores, mas apesar de tudo senti que o medo
te ceifava os dedos tingidos de pétalas.
Ouviam-se ao longe os passos de guerra na calçada,
as pedras dos monumentos oscilavam,
as estátuas tremiam de frio,
as aves não sabiam o que eram asas
e afogavam-se no grande rio.
As janelas tinham rostos colados, cinzentos.
Quiseste fugir para longe quando te falei de amor.
Mas eis que do céu cai toda a água do mundo.
Disse-te: não tenhas medo, é abril;
as medonhas gárgulas apenas vomitam águas da chuva.
E tu sorriste e tu sorriste, e com o teu sorriso
estendeste-me um poema vermelho.

Poema de Revel

sábado, 21 de março de 2009

















Ogrody - Jacek Yerka


Tatuagem de Primavera


Chegou a hora de despir as roupas da hibernação
e oferecer a pele ao mês de Março.
As andorinhas descem dos céus em forma de agulhas,
deixo-me levar pela deflagração dos sentidos
e desejo rosas e revólveres nos braços aventureiros
ou dragões fogosos no peito transbordando luz.
O apelo da estação tem lume no trajecto dos olhares,
suplico o cheiro da carne ilustrada em cores hipnóticas
e não posso esquivar-me à pungente tatuagem
dos dias eufóricos que para mim convergem.
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sábado, 21 de fevereiro de 2009
























Fragmentina - Di Vogo

Poema de vento inconstante

Existem ventos que trazem palavras e outros não.
Existem ventos tão carregados de vozes confusas
que soprando nos ensurdecem a memória do corpo.
É nesses casos que os moinhos solitários ficam loucos
e dilaceram as velas em orgasmos violentamente brancos.

Existem outros ventos tão silenciosos quanto auras
e que nos fazem parecer desabitadas grutas por dentro:
ouvimo-nos pingar das estalactites em gotas de sílica
num ritmo de tempo sideral, meticuloso e torturante,
e até sentimos o crescimento das estalagmites milenares.

Eventualmente, existem ainda outros ventos que rasgam
as folhas de papel escritas pela tortura da insonolência
e que só abrandam quando adormecemos crianças
sobre a voracidade da máquina de escrever.
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sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009





















Lectio - Dino Valls

Apologia do riso


O riso, o riso, o riso…
Ilumino o rosto com a luz dos palhaços,
toco a velha concertina desafinada
enquanto me perco em busca de um sim.
O riso, o riso, o riso…
Só o riso me pode defender do frio dos aços.
Repara como os lábios fechados no horizonte de nada
convocam as crianças tristes que encerro em mim.
O riso, o riso, o riso…

sábado, 3 de janeiro de 2009

























Still Life - Madeline von Foerster


Espírito zen


Em que penso?

Mastigo um caule de feno

e nem penso no mastigar; apenas

saboreio o seu nada em forma de seiva:

é doce – sabe-me a folhas finas de erva

afagadas pela brisa que sussurra do teu lado,

mas não penso no sussurrar. Apenas constato

que os pirilampos não sabem por que brilham,

nem os grilos do prado sabem por que cantam,

nem as montanhas sabem por que são altas,

mas eu subo as suas escarpas pontiagudas

só para soprar as corolas dos dentes-de-leão

e ver partir as sementes irradiando luz,

mas também não penso no partir:

penso em seiva de feno:

penso em nada.


sexta-feira, 26 de dezembro de 2008


























A secret place – Heather Nevay


Clepsidra


Tenho a minha porção exacta de água serena

para falar aqui do que fomos, do que somos

e do que naturalmente seremos. Como sabes, nascemos

no mesmo dia, na mesma hora, no mesmo instante

em que a lua cheia tingia de prata as asas das gaivotas

e o mar bebia toda a transparência dos rios impolutos.

Agora, neste silêncio tão líquido de cumplicidades,

deixamos cair das mãos frases bonitas no cimo das pontes

que alguém apanha depois nas margens movediças da incerteza.

Para quem ignora, somos um e dois e muitos simultaneamente.

Se vês um caminhante na companhia de um lobo, sabes que sou eu.

Por mim, sei que te encontro no limiar do horizonte.

É lá que tu… voas…


Olha, esgotou-se-me o tempo,

esgotou-se a água da minha clepsidra.

Agora é a tua vez: fala. Ou ri. Por exemplo:

amanhã, se te perguntarem por nós, diz

que nos perdemos num bosque de palavras

e que uma velha musa nos fez de Hansel e Gretel

aprisionando-nos numa intranquila casa em forma de poema.


segunda-feira, 24 de novembro de 2008






















Sunday – Edward Hopper


Mensagem numa garrafa de rum


Acabo de sorver a última gota de rum desta garrafa.

Como se não acreditasse, inclino-a ao nível do olhar

e assesto-a assim, qual monóculo de desusado pirata

esquadrinhando nervoso o horizonte de espelho flutuante

onde só navegam os navios fantasmas de velas esfrangalhadas.

O que faço agora, nesta ilha de areias secas e palmeiras estéreis,

Robinson Crusoe desesperado sem um Sexta-feira por companhia?

Quem me salva da solidão que me escama paulatinamente a pele,

o delirium tremens que me abala o corpo em maremotos?


A minha esperança é este poema nesta garrafa vazia

que atiro enfurecidamente ao mar.


E agora sento-me, e espero…


sexta-feira, 21 de novembro de 2008




















Les amants - René Magritte


Vampiros


Somos vampiros

e só saímos à noite.

O sol queima-nos a vista

e mostra as imundas chagas da carne,

o bolor, o pus da alma infecta.


Somos vampiros

e só saímos à noite.

O dia é uma faca

de metálico e cintilante gume

que nos dilacera as mãos e a cara.


Somos vampiros

e só saímos à noite.

Os espelhos mentem

e as pessoas que desejamos ser

não mostram nada o que sentem.


terça-feira, 18 de novembro de 2008
























Ураган Дуся - Andrey Remnev


Post-scriptum


Ah! Não te esqueças de estender os teus poemas na varanda:

fechados, ganham ferrugem e não soam muito bem aos ouvidos;

fechados, tilintam conforme metais impuros das metalurgias

e têm a cintilação embaciada de zebre das estrelas longínquas.

Fechadas, as palavras amolecem e pegam-se umas nas outras,

tornam-se difíceis de articular, enrolam-se na mecânica das línguas.

Fechadas, em vez de leres liberdade lês obscuridade

e em vez de leres amor lês bolor.


As palavras querem-se ao sol.

A poesia quer-se ao vento.

Não te esqueças.

























Exsanguis - Dino Valls


Metáforas de sangue


Sangue…

De que cor é o sangue que te flui nas veias?

Não é vermelho, nem azul, o teu sangue.

O teu corpo é trespassado por arco-íris,

tem cheiro a montes, rosmaninho e maias,

pomares de frutos maduros e doces amoras negras;

nele gravitam gaivotas fluorescentes de sal e plâncton,

perdem-se de vista praias de areia e segredos de espuma,

nele se arrastam vagabundos que tocam melodias de flauta,

audazes viajantes nocturnos que coleccionam estrelas.

Pelo teu corpo escorrem ribeiras límpidas e bravas,

que arrastam as esperanças caídas de Outono,

e sopram ventos que enlouquecem os moinhos

que desfazem os cereais em puras palavras.


O teu sangue é farinha de palavras

e tem a cor da poesia.


segunda-feira, 17 de novembro de 2008



















La Minotauro Machie - Pablo Picasso



Memórias do Labirinto


Um dia fui à minha procura sem fio de Ariadne.

Percorri caminhos sem luz, e se me olhasse ao espelho

o meu rosto seria a memória húmida de um animal,

raivoso e embrutecido, capaz de devorar os incautos.

Sem retorno possível ziguezagueei faminto no escuro

entre os muros tetraédricos, lancinantes da insónia

e à saída descobri o outro que era eu que não era eu.


Umas vezes fui homem, outras vezes fui touro;

muitas vezes fui besta-fera metade-metade,

ilegítimo príncipe descendente de Minos, rei de Creta.


sábado, 8 de novembro de 2008



















Klinik party – Saturno Butto


7


Sábado é o cume do penhasco,

Domingo é a repugnante náusea

e Segunda-feira a amarga ressaca.

Terça é a branca apatia,

Quarta é o lento despertar,

Quinta o retomar da marcha

e Sexta a grande escalada

para de novo tombar

no abismo de Sábado.