quarta-feira, 29 de outubro de 2008











Dissectio – Dino Valls


Dissecação ortográfica


Quando me apetece dissecar as palavras

disseco-as à minha maneira: primeiro

espero pela calada da noite e adormeço-as

com clorofórmio, mas preciso ser célere

senão adormeço eu sobre a brancura do papel.

Depois distendo-as nas linhas rectas do caderno

e esventro-as com a minha bic cristal.

( Lembras-te? Bic laranja para dissecação fina,

bic cristal para dissecação normal )...

Por exemplo, distendo a palavra pássaro:

divido-a em asas, plumas, trinados...

Se me debruçar no íntimo de asas consigo depurar

vários azuis, nuvens, ventos e ainda Ícaro

(encontro sempre Ícaro na dissecação de asas, porquê?).

É sempre inquietante dissecar a palavra pássaro.

Outro exemplo, distendo a palavra árvore:

divido-a em raízes, folhas, flores, frutos...

E se me debruçar no âmago de frutos consigo extrair

maçã, paraíso, Adão e Eva,

e Eva faz-me lembrar a nudez do teu corpo

(encontro-te sempre na dissecação de frutos, porquê?).

É por isso que acho assaz perigoso dissecar a palavra árvore.

O melhor seria deixar as palavras em paz.


segunda-feira, 27 de outubro de 2008



















Reincarnation of the city - Mitsuyoshi Haruguchi


Ruínas de vidro


As cidades em campânulas

parecem sempre muito frágeis.

Ao som doutros passos, ou gritos,

estremecem e temem a derrocada.

Nem as muralhas que outrora barravam

os destemidos cavaleiros sanguinários,

nem mesmo essas são agora intransponíveis.

Não, não há torres nem arranha-céus eternos.

Eternos são os voos dos pássaros indesejados.

Eternas são as ruínas dos impérios de vidro.


sexta-feira, 24 de outubro de 2008



















Scintillating Venuses – Kris Lewis


Devaneio da rosa roxa


Na tua varanda há uma rosa roxa e

não sabes se és feliz porque tens uma rosa roxa?

Trepar um monte faz-me feliz, nadar no mar também.

Pequenas coisas fazem-me feliz: fico feliz quando

escrevo um poema, mesmo sendo um poema para ninguém.

Um caracol na minha mão também é um poema,

e uma joaninha, e uma rosa roxa na tua varanda.


Rosa roxa, roxa rosa:

repara no anagrama…


Não sei se serias feliz sem a tua rosa roxa.

A tua rosa abrange, contém, encerra tudo,

o aqui e o além, o agora e o eterno…

Se um caracol comer a tua rosa roxa,

o teu dever é amar o caracol.

Passa a ser o teu caracol de estimação

com rosa roxa no interior.


Rosa roxa, roxa rosa:

repara no anagrama…


Eu sei que divago, mas a tua rosa roxa

é um poema na varanda.


quinta-feira, 23 de outubro de 2008
















The metamorphosis – Frank Kortan


Poema (processado) para Kafka


Digam-me se não estarei a ficar louco.

Vi Gregor Samsa transformar-se em Kafka

na metamorfose descrita por um escaravelho gigante

já extinto, mais que extinto, da face da Terra.

Agora, os meus porcos comem pérolas ao pequeno-almoço,

as minhas galinhas cacarejantes põem ovos de oiro,

os meus peixes vermelhos nadam em champanhe

e as minhas vacas malhadas dão caramelos.

O cão, outrora fiel, urinou na fogueira e eu disse:

o fogo é o melhor amigo do homem.

O inferno é um paraíso, é lá que eu quero estar.

A paixão e o assassínio ainda estão a anos-luz,

amanhã poderão estar à distância de um abraço

e assim se desfará a branca espuma dos dias

com a demência que me trespassa

qual excessiva flecha de aço.


quarta-feira, 22 de outubro de 2008
















Dance hall of Gregor Samsa – Frank Kortan


Metamorfose


Sou o que escrevo, porém nem sempre.

Se quero ser espelho, escrevo: sou espelho. E sou espelho.

Se quero ser silêncio, escrevo: sou silêncio. E sou silêncio.

Já quando quero ser poema tenho forçosamente que pensar em ti,

na claridade que emanas mesmo ao crepúsculo das tardes sombrias,

na luz laranja límpida com que pintas os horizontes de setembro.

Não é fácil pensar em ti porque tens mil formas efémeras de ser:

Às vezes és dia, ave branca, nuvem volátil, cirro lilás,

caule de feno, flor de giesta, romã aberta ao meio;

onda do mar, búzio, areia quente, corpo nu, miragem de um seio.

Outras vezes és noite, ave negra, feiticeira dos bosques virgens;

lua, flor nocturna, coaxar de rã, grito de mocho, ira dos lobisomens.


Sou o que escrevo, menos quando quero ser poema.

Se quero ser poema, quem escreve poema és tu.

Por isso às vezes a minha vida é um lápis nas tuas mãos.


terça-feira, 21 de outubro de 2008













Self portrait – Madeline von Foerster


Xácara das sete bruxas


Há no bosque da minha aldeia

sete bruxas, dizem, muito belas.

Ainda um dia destes me perco

e entrego-me a uma delas.


Das sete, seis avoam de noite:

passam pelos peitoris ensebados,

de vassouras mágicas em punho,

roçando neles as nádegas dos rabos.


Das sete, cinco bailam ao luar,

juntam-se nos ermos terreiros

e, tocando adufes sempre à roda,

atraem os mancebos solteiros.


Das sete, quatro despem-se todas

e banham-se na frescura das fontes.

São tão esbeltas e tão fogosas

que enlouquecem os viajantes.


Das sete, três são ruins feiticeiras:

secam sapos e mandrágoras no telhado,

falam com os negros corvos ao ombro

e lançam pragas de mau-olhado.


Das sete, duas são boas alquimistas,

defumam as vestes de artemísia e saflor,

conhecem os antigos segredos das ervas

e preparam infalíveis filtros de amor.


Das sete, uma tem olhos verdes

e há quem lhe denomine Cloé.

Usa tiaras de jasmim no cabelo,

chamam-lhe bruxa e não sabe que o é.


Há no bosque da minha aldeia

sete bruxas, dizem, muito belas.

Ainda um dia destes me perco

e entrego-me a uma delas.


segunda-feira, 20 de outubro de 2008












Group portrait with lady – Siegfried Zademack


Marcas de água


Sim, é claro que podes ser gaivota trazendo no bico histórias do mar.

Eu posso ser pirata ladrão de tesouros alheios em ilhas tropicais.

Também podes ser Alice num país inventado com as cores dos flamingos

e eu filósofo erguendo a taça de cicuta à beira dos abismos helénicos.

Podes ser Calamity Jane de arma em punho, brigona, ébria de perigos,

e eu Kerouac percorrendo as estradas alucinantes em busca dos vagabundos.

Podes imaginar-te Agatha Christie dissimulando a faca do assassino

e eu Pessoa concebendo o Tejo como um desassossegado poema líquido.

Podes, podes ser Cleópatra e rainha das incompreensíveis pirâmides

e eu Marco António, romano, e morrermos juntos em Alexandria...


Mas se nos olharmos atentamente à contraluz do cair da tarde,

nessa hora em que os pássaros sonarentos fecham as asas ao dia,

verás que cada um de nós tem esse estigma indelével e inextinguível

que não engana ninguém nem os invisuais que nem Braille sabem ler.

Estamparam-nos as marcas de água na textura maleável do corpo:

seremos sempre como papel genuíno de um livro ainda por escrever.


sábado, 18 de outubro de 2008
















Le Thérapeuthe - René Magritte


Pai, árvore e pássaro


Acertei o relógio de silêncio com a queda das folhas de outono.

Depois esperei pelo inverno, deixei-o passar sem um único suspiro.

O meu pai, que era um homem silencioso, partira sem dizer adeus.

O meu pai tinha a linguagem das árvores, ele e as árvores

usavam a mesma língua.

Ainda o ouço dizer: nós, seres humanos, somos uma mistura

de árvore e de pássaro:

precisamos de raízes, mas também de asas para irmos mais longe.

Porém nunca te esqueças que é na árvore que o pássaro constrói o ninho.


O meu pai albergava todos os pássaros sem proferir uma palavra.

O meu pai utilizava qualquer árvore em troco de um chilreio matinal.

O meu pai era uma árvore, era um pássaro, partiu sem dizer adeus.

Deixou-me o seu relógio de silêncio.


sexta-feira, 17 de outubro de 2008












Bent – De Es Schwertberger


Ofício de Amar – Poema no masculino


Todos os ofícios requerem estudo

mas o de amar precisa de braços, mãos calejadas,

suor para erguer as pedras do nosso edifício.


Se a paixão sorri ao virar das esquinas,

o amor, ah! o amor de argamassa, pedra e cal,

esse amor constrói-se das ruínas.


O ofício de amar deve ter um princípio, um meio e um fim.

Gostaria de não saber fazer outra coisa:

Amar. Amar-te. Dar tudo de mim.


quinta-feira, 16 de outubro de 2008















Weeping girl – Edvard Munch


Ofício de Amar – Poema no feminino


A luz que vem de ti

é a luz que a lua emana

nas noites de Agosto sem estrelas

sobre o meu corpo desamparado

em jardins secretos de passifloras

e sublimes dedaleiras venenosas.


É ao mesmo tempo tudo e nada, porque não posso esperar de ti

as duas mãos cheias de mundo, o olhar inteiro só para mim…


Às vezes quero cortar os pulsos, subir a ponte e saltar…

Mas isso porque me esqueço que não és só meu

e finjo não saber que o teu ofício é amar.


quarta-feira, 15 de outubro de 2008













Corner – Ivan Titor


Cidade


Na cidade das antenas

e da sucata ambulante

dourada,

metalizada,

as chaminés vomitam fumo

que me cola os olhos

e me adormece em movimento.

Fico ébrio, eufórico, eléctrico

ao som das sirenes sem tino

que me arrancam da cama

(que desatino!)

para beber mais um copo

do doce veneno.


terça-feira, 14 de outubro de 2008















The man who lived in his dreams – Vlada Mirkovic


Poema com vista para um castelo de areia


Daqui vejo o dia sem a luz do teu rosto.

Daqui vejo a noite sem a estrela da tarde.

Daqui vejo o marinheiro numa casca de noz.

Daqui vejo o mar em abismos de saudade.

Daqui vejo a tempestade nas asas do albatroz.


Daqui vejo os ontens, o hoje e os amanhãs.

Daqui vejo as diáfanas medusas assassinas.

Daqui vejo as mãos ancoradas às ideias vãs.

Daqui vejo os olhos mareados de espumas.


Daqui vejo uma princesa a fingir de sereia.

Daqui vejo-me a mim em pedaços de criança.

Daqui vejo-me um príncipe e um castelo de areia.


segunda-feira, 13 de outubro de 2008
















Ikarus - Siegfried Zademack


Filhos de Dédalo


É Verão e o sol dardeja no oceano.

Temos asas que despontam impacientes

e julgamos nós que são asas de condor

quando na verdade são míticas asas de cera…


Mas quê! A ambição é um labirinto de ruelas escuras,

queremos, insanos, roubar os céus aos pássaros,

abraçar os astros como quem abraça os amigos

e fugir, fugir para sempre desta ilha circular…


Porque somos filhos de Dédalo,

o nosso fim é o mar…


domingo, 12 de outubro de 2008













Good Boy – Sean Hopp


Revólver (inocente) para a eternidade

A Al Berto


Tens um revólver nas mãos!

Sim, tens um… revólver… nas mãos… e

aponta-lo para a minha consciência, branca.

Não pestanejas, não vacilas, não tremes. Sinto

os coiotes rondarem-me os calcanhares espumando tempo volátil.

O aço frio anilado enrubesce nos teus dedos quentes:

ainda não premiste o gatilho e já aspiro o cheiro da pólvora.

Se disparares, acerta-me no peito, no lado esquerdo:

o coração é um órgão muito complexo para viver eternamente.


sábado, 11 de outubro de 2008















Promenade – Mark Chagall


Anamnese


Tinhas, nesse dia, o mar a escorrer no cabelo,

também o sol do deserto a queimar-te a pele,

quando trocámos de olhares num jogo de crianças.

Se tivéssemos dado as mãos, partiríamos como dois pássaros

rasando as ondas em filigranas de espuma, e quem sabe...

quem sabe em quantas ilhas não nos deixaríamos naufragar

de livre vontade.

Eras, nesse dia, feita de luz, de espelhos,

reflectias todas as estrelas, as que vemos e as que não vemos,

quando trocámos de olhares num jogo de crianças.

Se tivéssemos dado as mãos, partiríamos como dois cosmonautas

buscando o tempo perdido na poeira das galáxias, e quem sabe...

quem sabe em quantas luas não nos deixaríamos morrer sem ar

de livre vontade.

Trocámos apenas de olhares, és uma reminiscência de ontem.

De ti tenho a flor do silêncio que me plantaste na palma das mãos.


.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008












Nuit sur la mer - Paul Delvaux


Luar


Aqui, nada.

O vento levou as palavras.

Só me deixou as mãos cheias

de luar...


quinta-feira, 9 de outubro de 2008















O grito – Edvard Munch


O meu grito


Perguntei ao vento onde estava a fúria

capaz de derrubar muros e muralhas.

A sua voz foi de silêncio

com cheiro a pinheiros molhados, resina e caravelas fantasmas

vogando o mar frio atlântico.


Se ao menos o vento levasse como sementes maduras

o meu grito

e derramasse as minhas palavras naquela terra de esperança

onde se estende a mão e se recebe o fruto...


quarta-feira, 8 de outubro de 2008













The Sleeping Venus - Paul Delvaux


Sono


Atiro o olhar para lá do horizonte da noite.

As estrelas pingam como mel, uma a uma, e ouço

o chamamento dos ralos, mas não consigo regressar:

apagam-se os espelhos languidamente.

Todas as crianças rebeldes em mim adormecem sobre a mesa.

Exaustas, não comeram toda a sopa de letras:

sonham já com o dia seguinte. Umas

acariciam a suave crina dos unicórnios resplandecentes,

enquanto as donzelas entrançam os longos cabelos no lácteo colo.

Outras atravessam os vales férteis em balões de ar quente

e apontam os dedos irrequietos aos animais errantes

da aldeia adormecida.


Sonho já com a noite seguinte.


terça-feira, 7 de outubro de 2008



















Fruits of the Midi - Pierre August Renoir


Natureza morta


Na mesa, os frutos esperam

pela faca.

Não temem a morte, não sabem nada sobre a dor.

Nem lhes interessa serem pintados, tornados imortais na tela.

Secretamente,

desejam ser abertos ao meio, é assim que se perpetuam.

Já os crisântemos, na jarra, contam os dias

de agonia suspensa.

Conhecem bem o cheiro das trevas, as borboletas de silêncio.

Em breve tombarão na vertigem da terra

sonhando com os girassóis de van Gogh.

Mas na mesa os frutos: esperam indiferentes pelo pintor.

Depois virá a faca.


domingo, 5 de outubro de 2008














Großstadt-Triptych (det) - Otto Dix


E a noite abre-me os olhos


O dia cega-me; repito: o dia cega-me.

É no escuro que sinto o dia tão fútil.

A noite tem mais flamância que o dia,

caminho por ela em busca de estrelas

e liberto os monstros mansos reprimidos.

A alquimia só funciona nas trevas, e a poesia.

Sim, à noite sinto as palavras circularem por mim

em direcção aos dedos nervosos, irrequietos.

À noite, as palavras embebedam-se, pulam, dançam

e a seguir jazem descontraídas no luar do papel.

À noite colho frutos de absinto lúcido.

Desperto com o rumor mágico do crepúsculo,

e depois a noite abre-me os olhos…