sexta-feira, 18 de julho de 2008






















Insomnia – Remedios Varo


Insónia


Que barulho faz uma mão vazia pela noite dentro?

Que som produz o poema arrancado a ferros?

Num insossego rasgo a noite de papel em claro,

corro atrás das centopeias e sonho pisá-las com um único pé,

mas a mão continua vazia, e hesita.

As palavras escapam-se como peixinhos-de-prata

e roem o poema nos interstícios mais subtis.

Escrevo insónia, e nada...

Mudo de caneta, entorno a tinta permanente na mesa

permanentemente branca, irremediavelmente azul.

Olho para o espelho e não me vejo.

Vejo a mão vazia avançando pela noite dentro.


sábado, 12 de julho de 2008
















Rectangle 1 – Brian Biedul


Poema claustrofóbico


Uma, duas, três, quatro paredes

e o olhar cravado no cimento.

- Ar... ar... ar...

Ninguém me salvará deste tormento

mesmo que grite um horror de vezes.

- Ar... ar... ar... preciso de azul!


























Sem título - Mário Botas

Sem título


Gosto dos quadros intitulados sem título.

As linhas podem ser desejos de infinito, ou amarras,

vistas de longe ou de perto, conforme o sítio

onde se planta o espectador no museu de arte moderna.

Uma grande mancha de azul pode ser o céu,

o céu pode ser o mar, o mar pode ser uma grande mancha de azul.

Um traço negro pode ser um barco, um barco

posso ser eu e deixar-me arrastar pelos tons de azul marinheiro.


Não sei se gosto de poemas sem título...


terça-feira, 8 de julho de 2008













New model - Miguel Fazenda

Estátuas de sal


Diante de um mar tão manso e liso,

as crianças serenas arquitectam fortalezas de areia,

os adolescentes imergem na placenta tépida da génese

e retinem gritos que assustam as ondas polidas de espuma.

Eu busco o meu destino entre gaivotas, conchas e algas,

seguindo pensativamente as pegadas alheias.


Entre maresias de iodo e cremes solares,

os corpos de bronze escalpelizam-me a vista:

caminham para mim, quase roçamos os ombros.

Há entre eles sereias mudas esculturais

que paralisam os veraneantes imprudentes

e os transformam em estátuas de sal

paradas, sonhando com tórridas noites.


Sigo em frente, não ouso olhar para trás…


























As pessoas solitárias pensam em formigas - Miguel Fazenda


Cleptomania das mãos


Se também em todos os búzios só se ouve a memória dos mares,

já as nossas mãos encerram a reminiscência do latrocínio.

Porque elas se estendem ávidas para todos os pomares

e para todos os corpos e para todos os poemas proibidos.

Os frutos são as primeiras vítimas da infância das mãos

e rapidamente conhecemos os perigos das árvores tentadoras.

As mãos são como criaturas que nasceram cegas e roubam

pela volúpia da suavidade e pelo conforto do calor da pele nua.

Nem são os olhos que buscam os devaneios ocultos nos livros,

mas as mãos que transgridem e ousam deleitar-se lubricamente

com o poder de domínio maquiavélico sobre os objectos alheios.

Sendo assim,

se amanhã descobrires as tuas árvores vazias de romãs

ou se acordares e não souberes da tua dilecta colecção

de poemas e de búzios marinhos, não fui eu: foram

estas duas mãos que não domino e roubam sem razão.