segunda-feira, 30 de junho de 2008

























Luce polare - René Magritte


Anatomia dos ecos


Gritamos do cimo de nós-montanhas as palavras alegres estou aqui

e dos vales miniaturais ressoam como tambores as palavras só agora.

Fazemos tanger os gonzos de bronze intemporal nos templos do silêncio,

mas a ilusão de retorno não clarifica o sentimento recíproco do afecto.

Há vozes que se desdobram em línguas de fogo e queimam a garganta

quando se soltam entre quatro paredes: e morrem de claustrofobia.

É por isso que ainda penso que somos hirsutos homens das cavernas.

Ouvimos sons subterrâneos que vagueiam pelas brechas da pedra

e dizemos convictamente que são os deuses murmurando entre si.

Conjecturamos o magnificente destino que eles nos querem atribuir,

quando na verdade deveríamos dedicar-nos a pinturas de caça.

Somos ocos por dentro, somos feitos de ecos, ecos, ecos…
















Princípio da incerteza - René Magritte


Voos de cal


Sem dúvida que temos nas asas

a típica cor das longínquas casas

caiadas com a paciência dos antigos.

Rasamos as recônditas aldeias de infância

como aprendizes de pássaros nocturnos

e recebemos toda a claridade lunar das paredes,

mas há momentos em que perdemos a memória

das mãos, dos gestos, dos rostos, das idades,

porque as aves não dizem, não soletram palavras

nem as guardam em livros, em folhas de papel.

As nossas viagens aladas são curtas e brancas.

Têm a duração da cal efervescente e mais nada,

porém encerram todo o poder das leis alquímicas.


quarta-feira, 25 de junho de 2008











Roots – Frida Kahlo


Improviso sobre a preguiça


Hoje não quero saber da vontade,

abandonei-a na terra do vale fértil

onde habitam os mandriões de Cossery.

Hoje sinto as mãos transbordando de vazio,

a libido adormecida em hermético casulo.

Hoje sinto o caprichoso bicho da sede a tecer,

e no entanto vejo daqui, tão perto, a fonte.

Hoje, pensando em ti, apetece-me morrer…

















The Temptation of St. Anthony - Hieronymus Bosch


Apresentação da noite


Senhoras e senhores,

diurnos madrugadores do enfado:

apresento-vos a noite – a noite clara e nua.

A noite é uma égua brava de asas negras

que fragmenta o sol em escórias de luz.

É no seu dorso que parto a galope por essas ruas

levando comigo a poesia de Al Berto no alforge

e bato à porta dos monstros adormecidos:

convoco-os solenemente para mais uma jornada

daquilo que nos alimenta – a loucura.

Lobisomens, vampiros, gigantes, anões primordiais,

gémeos siameses, a mulher barbuda, o homem-elefante,

o homem das três pernas e o homem-serpente:

todos me seguem na agripnia nocturna.

Por entre fogos-fátuos e o sorriso da lua,

afugentamos os gatos e os cães ladram:

a nossa passagem é um alvoroço de caravana,

deixamos um rasto de euforia circense.

Passamos ao lado dos manicómios de betão

acenando um adeus aos mentecaptos

enclausurados no tédio do azulejo branco.


Senhoras e senhores,

a noite é o meu dia!


sábado, 21 de junho de 2008




















Isto não é um cachimbo - René Magritte


Advertência


Fumar

prejudica

gravemente

a planta

do

tabaco.















Illegal light making - Jacek Yerka


Meia-noite de Lua cheia


À meia-noite, quando a Lua cheia move oceanos,

acontece o momento certo da metamorfose:

a licantropia corrompe-lhes o corpo, mas liberta-os:

os belisomens rasgam as roupas e mudam de pele

e deixam as esposas em sonos profundos

saltando os vetustos muros dos quintais.

Os cães presos uivam e eles correm livres a trote

pelos caminhos das aldeias adormecidas

rumo às amplas clareiras do bosque.


O que eles querem não é o sangue rubro,

mas tão-somente bailar com as bruxas

as frenéticas, desvairadas danças nuas

em redor de feéricas fogueiras de zimbro.


Quando a Lua cheia move oceanos, e inspira os poetas,

os belisomens libertam os instintos encurralados

e regressam a casa pela aurora, extenuados.


quinta-feira, 12 de junho de 2008















The Three Ages of Woman (det.) – Gustav Klimt


Mãe, rosto da eterna espera


A minha mãe não dorme enquanto eu não chegar.

Entrego-me aos labirintos da noite e ela faz arroz-doce,

reza para que o meu anjo-da-guarda me traga inteiro a casa,

sonha com os tempos idos tranquilos de outrora

imaginando-me menino aos ninhos, ou pequeno ladrão de nêsperas.

A minha mãe é avessa à escuridão, às sombras

que estão para além dos muros – por isso é o rosto da eterna espera.

A minha mãe não dorme enquanto eu não chegar.

Caço estrelas cadentes desnorteadas e ela,

ela enfeita o arroz-doce com círculos de canela,

espera-me como eu espero pela noite para dar vida a mais um poema.

Também eu não durmo enquanto o poema não chegar...























Creation of the birds - Remedios Varo


Canção para um pássaro morto


Tenho um pássaro morto na palma da mão.

Sucumbiu à tortura das crianças maquiavélicas,

às grades férreas que lhe agrilhoavam as asas.

O bosque inteiro chora o seu fim em resina

enquanto os dias espreguiçam os braços calados.

Este já foi vento esquivo em estado sólido,

já foi livro aberto de aeronáutica,

já foi música de harpa para os meus ouvidos…

A criança em mim não acredita na morte,

julga que todos os pássaros têm um anjo da guarda


e este pássaro hirto e frio na concha da minha mão

também merece uma última, derradeira canção.
















El Paraiso de los Gatos – Remedios Varo


Poema ingénuo para Eugénio


No beirado do teu alpendre

há um gato

que me lambe o sol das mãos.


À noite refugia-se nos sótãos

e caça-me histórias

de aves brancas fugidias.


quarta-feira, 11 de junho de 2008




















La Reproduction Interdit - René Magritte


O silêncio das palavras como espelho e etc.


O silêncio das palavras como espelho e…

sim, sobretudo a palavra espelho onde

imperturbável mergulho o semblante frio,

é tão taciturno quanto o reminiscente lago onde

pesco langorosamente os peixes tristes da memória.


Para lá do espelho – da palavra – há um mundo onde

sem-abrigo me passeio nas avenidas da solidão:

aqui, as lágrimas correm tanto no riso como no choro

e as aves mudas debicam o alimento da mão.


Entro no espelho – na palavra – para recordar

o dia de ontem e descubro que sou uma estátua onde

também continuamente o silêncio lacrimeja azul de zebre.


Depois fixo o olhar no outro olhar de bronze estático:

e penso: a vida pode mudar com um simples piscar de olhos…


Mas agarro-me ao silêncio das palavras como espelho e etc.


poema de Revel









Water serpents II - Gustav Klimt


Música submersa


Amo as águas dos rios sem pontes

onde os salgueiros mergulham os ramos

como canas de pesca inocentes.

Há nelas uma espécie de sinfonia inumerável

que faz rodopiar os seixos e me seduz

ao extremo de querer afundar o rosto e espiar

a dança nupcial das cobras de água.

Amo a música submersa que as embala

e as faz enovelar os corpos frementes.

Amo – amo as águas dos rios sem pontes.













The Little Deer – Frida Kahlo


Alegoria da flecha


Um poema no papel é uma flecha no arco:

depois de escrito, já não tem retorno;

depois de lido, faz sangue no animaleitor.

Para quem desconhece, o animaleitor é um bicho raro

que vive algures na terra do nunca e que só tem olhos para o poema.

Ele sabe que pode esvair-se em sangue assim que põe a vista no poema,

e também sabe que pode morrer no fim, mas é da sua natureza.

Ele tem a noção que todo o poema é uma flecha.

Que todo o poema causa sofrimento.

Todo o poema é perigoso.


segunda-feira, 9 de junho de 2008


















Pablo Picasso

Poema abstracto


Circunspecto, o Sr. Pablo pintor

assimila um verso do Sr. Pablo poeta:

Dois amantes felizes não têm fim nem morte.

Em frente da tela traça uns traços com raiva

e um ror de linhas paralelas e contorcidas

e uma catadupa de delirantes pinceladas.

Dá-lhes luz e movimentos sem nexo.

O pintor recua extenuado e relê o verso.


Os corpos foram desenhados em dois tempos.

Têm as mãos e as pernas e os braços enlaçados,

têm olhos e nariz e boca e até sorriem

mas são rostos subtilmente quadrados.


O poeta, em frente da tela, teria dito:

o amor é uma amálgama de cubos.
















Der Kuss - Gustav Klimt


Beijo


Relembro-nos ocultos sob a pérgula de glicínias.

A luz pingava suspensa em cachos de lilás.

Sentíamo-nos submersos num líquido turquesa

onde os gestos morosos subaquáticos pareciam

brancos e nus.

A aproximação dos lábios

teve a lentidão dos moluscos marinhos.

O teu braço cingiu-me a nuca,

as minhas mãos perderam-se no infinito

e o mundo parou assim…


Só há um beijo válido: o primeiro.

É puro, de mármore, eterno.

Merece uma estátua no meio do jardim.






















Golconde - René Magritte


Na sombra das aves


Vou a caminho das vastas planícies brancas,

lá longe onde se caminha de pés nus.

Deixei o ofício para trás, libertei-me

dos relógios de parede de cucos metálicos

que me impingiam paranóia cerebral

e das cadeiras giratórias confortáveis

que me vergavam a coluna vertebral.


Lá, tenho os pássaros à espera

para voos mais altos.


Mas é longe, muito longe…
















Figure with Meat – Francis Bacon


Parti o meu dia aos bocados


Atirei ao dia a primeira faca:

eu, inicialmente, de olhos vendados;

e o dia na posição crucificada de um xis.

Acertei-lhe em cheio entre o umbigo e o plexo solar.

Regozijei a vista nas vísceras em forma de nuvem cinza,

excelso banquete nu para as moscas estroboscópicas.

O meu dia é um animal que brama em agonia

enquanto cirurgicamente o parto aos bocados.

Creio-me um antropófago de tempo e

é assim, aos bocados, que me deleito

com o dia que nasce em mim.


sexta-feira, 6 de junho de 2008























Sonet - Jacek Yerka

Tráfico de azuis nocturnos


O azul nocturno é a minha cor predilecta. É também

a que se vende mais nas esquinas das cidades.

Assim que a noite cai usurpo esse azul

aos amantes ocultos nos prados de luzerna.

Com essa cor apodero-me, umas vezes, do canto dos ralos

e do cintilar dos pirilampos; outras, do piar dos mochos

e de todas as estrelas preguiçosas do firmamento.

É uma cor efémera com o preço dos diamantes

incrustados na cauda rebelde dos cometas

e à qual só os vagabundos dão valor.

(E os poetas…)


Neste instante, sinto o peso da lua nas costas.

Furtei à noite mais um azul nocturno, mas

este não o venderei: este é para te oferecer

no princípio da manhã.












Multidão - Miguel Fazenda


Dissolução dos sentidos


Já sinto a transumância dos animais caprinos pela montanha que sou.

Daqui, do cume de mim, o olhar perde-se-me nas auroras boreais do norte.

O que ouço são ecos dos trovões das madrugadas avassaladoras

e acredita que já não distingo o paladar salgado dos tigres de jade.

Assusta-me asfixiar com o enxofre queimado dos revólveres súbitos

e repara como me tremem as mãos e deixo cair os frutos mais sensíveis…


Juro que parti em viagem por todas as estradas possíveis e imaginárias

e nenhuma delas me levou à cidade onde mora o teu corpo.

Desconfio que já não há rosas-do-vento que me orientem:

É urgente inventar uma outra geografia.


Porque quando chega a estação quente das danças

todas as nuvens se transformam em linhas de chuva

e inevitavelmente me dissolvem os sentidos.


quinta-feira, 5 de junho de 2008




















The letter - Fernando Botero

Laranja em duas metades


Aqui sentado no meu silêncio diante de ti

descasco uma laranja como se despisse o sol.

Divido o fruto em duas metades,

estendo-te uma metade...

A minha metade criança deseja ver-te

como saboreias essa metade laranja.

Sugas-lhe a luz rica em vitaminas cês,

esmagas-lhe os gomos imaginados lábios

(os meus lábios talvez)

e fechas os olhos...


Aqui sentado no meu silêncio diante de ti

estendes-me os braços em ramos de sombra.

Expeles o aroma das laranjeiras em flor,

ofertas-me laranjas de oiro proibidas.

Descasco só mais uma, e dou-te metade.


























Eduardo Malé

Poema de argila


Para começar um poema, apanho uma frase tua no ar,

depois aprisiono-a no limbo da memória e mais tarde modelo-a

conforme o inconformado oleiro faz à argila vermelha:

amasso-a com todos os dedos, cravo-lhe as unhas, rasgo-a,

estendo-a e separo-a, palavra a palavra, até a lama escorrer como sangue.

Entre mim e as palavras estás sempre tu: porquê?

Quem quer saber dos poemas que se geram da costela das tuas frases?

Ontem, ao espreitar da noite, disseste: o disfarce é libertador...

E partiste silente e alvacenta como uma bela ave nocturna.

Apanhei o disfarce é libertador e aqui estou, a modelar a frase,

num esforço maternal de parir o poema, as mãos enlameadas de barro

vermelho ou quase tão vermelho como sangue de alguém.

Quero pensar que me disfarço de oleiro para me libertar, ou antes

para libertar as peças de cerâmica que se materializam da argila que somos.

Quero pensar que te libertas quando te disfarças perante mim;

por isso disseste: o disfarce é... e partiste como uma bela ave

deixando-me só – à luta com o barro, com a frase.


quarta-feira, 4 de junho de 2008

























The bathroom - Fernando Botero


Paradigma

Hoje, de manhã, lavei a cara

com quatro sabonetes diferentes.

Cada um cheirava a uma estação do ano

e cada um prometia uma sensação nova,

uma mudança radical na nossa pele.


À noite vi-me ao espelho:

a minha cara era a mesma de sempre.


terça-feira, 3 de junho de 2008















Chatka rybaka - Jacek Yerka


Imbróglio


Os peixes bebem toda a água do mar

e não sabem. Não sabem.

Se soubessem, quereriam ser homens.

Mas os homens têm já todo o mar nos olhos,

sobretudo quando choram,

e se os peixes soubessem disso

talvez preferissem ser pássaros,

que é o que os homens desejam ser.


segunda-feira, 2 de junho de 2008

























Paccbet - Andrey Remnev

Dióspiro

Dizias que eras capaz de imitar uma árvore de fruto.
E como eu não acreditava, um dia fizeste isso: nua,
fincaste-te ao chão e criaste uma cabeleira de raízes, depois
ergueste os braços, abriste os dedos em forma de ramos
e deixaste que as folhas te pintassem de verde.
Absorveste todo o sol no ventre, floriste.
Por fim frutificaste o corpo:
agora és um voluptuoso dióspiro
no frio de janeiro.





















Wellcome home (Sanitarium) - Miguel Fazenda

O lado de lá de cá

Na minha cidade havia um edifício que se destacava de todos os outros,
apesar de as multidões de transeuntes mal repararem nele.
As pessoas passavam por ele quase em corrida, acotovelando-se umas nas outras,
sem se olharem, sem se sorrirem, ao som dos ruídos, dos reclames,
das sirenes, dos motores, das sirenes, dos motores, num vaivém frenético de insecto
para chegarem a qualquer lado que nem elas próprias sabiam.
Se calhar ignoravam-no, ou pura e simplesmente fugiam desse edifício.
Acho que percebo agora por que me advertiam os adultos, quando eu era criança,
para não me aproximar dele. Diziam que estavam lá dentro, enclausurados,
poetas lunáticos, artistas sonhadores, homens e mulheres que falavam sozinhos,
homens que fingiam ser inventores disto e daquilo, mulheres que se despiam
e bailavam nuas, bailavam, bailavam, até ao êxtase, arrancando os cabelos,
ou abrindo sulcos, rasgos, linhas de sangue na pele…

Pois um dia ganhei coragem e entrei. Aquela grande porta estava aberta
e, sem pensar duas vezes, entrei. Deparei com um corredor imenso, branco,
de azulejo, branco, e lá ao fundo as pessoas, paradas, olhavam para as paredes.
Avancei e juntei-me a elas. Não vi nada nas paredes, mas as pessoas continuavam
a olhar, muito serenas, contemplativas. Só depois reparei que, se olhasse com mais
atenção, visualizaria telas expostas pelas paredes brancas, brancas dos corredores,
e que as pessoas, paradas, quietas, as contemplavam com ar fascinado.
Havia uma que se intitulava «Multidão», outra «Controla a tua raiva»
e outra «As pessoas solitárias pensam em formigas»...
Também eu fiquei fascinado, diria mesmo subjugado ou completamente
magnetizado pelos quadros. A certa altura fiquei na incerteza se estava
no lado de cá ou no lado de lá das telas, e agarrou-se a mim um certo pavor:
o de me poder vir a encontrar retratado numa daquelas pinturas.
Por isso recuei, pé ante pé, primeiramente, depois a correr como um louco
para escapar dali. Atravessei o grande corredor branco, de azulejo, branco, branco
e, antes de sair do edifício, parei e li numa tabuleta dourada:
MANICÓMIO. ENTRADA LIVRE.

Fiquei baralhado, sem perceber coisa alguma…
Ainda hoje estou na dúvida. Ainda agora estou na dúvida.

domingo, 1 de junho de 2008





















Tower of Subconsciousness - Jacek Yerka

Celulose

Do verde bosque contemplo
a minha biblioteca estéril,
que é, também ela, um bosque branco
onde os sonhos se lêem
folha a folha.